Escrita: endereçamento e experiência – Lispector e o apalpar invisível na própria alma
Escrever – duro como quebrar rochas
Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados.
Ah que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome da moça…O que me proponho contar parece fácil e à mão de todos.
Escrita – difícil elaboração – apalpar o invisível na própria alma
Mas a sua elaboração é muito difícil.
Pois tenho que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo. Com mãos de dedos duros enlameados apalpar o invisível na própria alma.
Por enquanto quero andar nu ou em farrapos, quero experimentar pelo menos uma vez a falta de gosto que dizem ter a hóstia. Comer a hóstia será sentir o insosso do mundo e banhar-se no não.
Coragem – abandonar sentimentos confortáveis
Isso será coragem minha, a de abandonar sentimentos antigos já confortáveis.
Mas sabendo antes para nunca esquecer que a palavra é fruto da palavra. A palavra tem que se parecer com a palavra. Atingi-la é o meu primeiro dever para comigo.
E a palavra não pode ser enfeitada ou artisticamente vã, tem que ser apenas ela. E quero aceitar minha liberdade sem pensar o que muitos acham: que existir é coisa de doido, caso de loucura. Porque parece. Existir não é lógico.
Escrever – para não morrer simbolicamente
Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em mim. Tenho é que me copiar com uma delicadeza de borboleta branca.
Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens.
Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias.
Lispector, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro, Rocco, 1998.