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Vera Canhoni

Outubro Rosa com Cora Coralina – O feminino em análise

Outubro Rosa com Cora Coralina – O feminino em análise

Como psicanalista entendo a importância de cuidarmos e compreendermos o ser humano de modo abrangente, levando em consideração corpo (físico e biológico) e mente (aspectos emocionais e psicológicos) em todo o processo de uma existência.

A construção de uma subjetividade ou o modo próprio de ser de cada uma, como forma particular e original para ser e estar no mundo se apoia na integração corpo e mente.

Uma existência não se faz pela divisão corpo e mente; corpo e mente se estabelecem como partes integrantes e interdependentes que compõe um ser humano em sua singularidade e diferença e nos modos como cada um é capaz de construir uma identidade.

Meu papel hoje nesse breve texto é lembrar que quando falamos em câncer de mama – as emoções, os sentimentos e todos os aspectos psicológicos que permeiam essa condição precisam ser analisados, acolhidos, identificados, considerados e tocados.

Ainda hoje há dificuldades e resistências para tocarmos nas questões mais emocionais e psicológicas; muitos ainda consideram um tema tabu e não se sentem à vontade para dialogar sobre esse assunto ou falar dos sentimentos e emoções, intensificando ainda mais a desinformação, angústias, medos e sofrimento psíquico.

Ressaltar cada vez mais a construção e manutenção desse espaço para dialogar sobre tudo aquilo que permeia as questões oncológicas – depende de construirmos e cultivarmos paulatinamente um terreno e espaço para dar lugar aos sentimentos e emoções e tudo que se refere à esfera desse sofrimento psíquico.

Quando converso sobre as questões emocionais e subjetivas para abordar a respeito do câncer de mama não perco de vista:

1-O ser (singular) que há em cada mulher;

2- A importância de cultivar os cuidados com a pessoa como um todo – importante considerar que o câncer de mama é uma parte, um aspecto da história de alguém, mas não a define completa e integralmente.

3- A possibilidade de resgatar os aspectos mais saudáveis – como forma de equilibrar e ampliar o foco de atenção para além do diagnóstico – isso só é possível quando cultivamos e criamos um ambiente e espaço para que essas questões sejam trabalhadas.

4- O ambiente e os aspectos sociais: como as questões oncológicas afetam a família dessa mulher, seu companheiro(a) amoroso(a), suas relações sociais e profissionais.

É nesse sentido que o oferecimento do suporte emocional também se estende para os membros da família, uma vez que eles são afetados – ainda que indiretamente – em seus aspectos emocionais e necessitam de um apoio e acompanhamento psicológico.

Além do mais, necessitam desse apoio pois podem operar como um “ambiente suficientemente bom”, oferecendo suporte e cuidados. É fundamental que a família esteja apta e em condições emocionais saudáveis para sustentar e oferecer os cuidados necessários.

Orientar, educar, incentivar e proporcionar meios para que cada mulher possa se conhecer mais intimamente é de fundamental importância para apoiar e sustentar a saúde emocional e psíquica.

Desse modo, não há dúvida de que sustentar a saúde emocional e psíquica – cuidar dos aspectos psicológicos acontece em diversos momentos que atravessam as questões relativas ao câncer de mama e se estabelecem desde:

  • A prática efetiva para a detecção precoce do câncer de mama – envolvendo o autoexame e autocuidado como forma de autoamor e preservação da saúde das mamas;
  • A preocupação e os temores envolvidos frente à possibilidade de receber um diagnóstico de câncer;
  • O momento de concretização real do diagnóstico;
  • As incertezas e angústias frente ao processo de tratamento que podem envolver procedimentos de quimioterapia, radioterapia ou mastectomia;
  • Novos desafios e cuidados exigidos tocante a recuperação, reabilitação, reconstrução mamária e/ou sequelas deixadas pelo câncer.

Etapas que exigem – cada uma a seu modo – uma reestruturação da vida em seus diferentes aspectos: pessoais, profissionais, familiares e sociais

Felizmente sou muito sensível e empática no meu exercício e escuta clínica às mulheres que são atingidas de forma avassaladora e traumática por esse real (câncer de mama) que se impõe e perdem o chão das suas referências até então construídas de suas existências..

Quantas suspendem seus planos, projetos, rotinas, relações e vivenciam uma “montanha russa” de emoções, sensações e sentimentos:  raiva, frustração, tristeza profunda, culpa, revolta… e sentem de forma nua e crua, na pele, na carne e no coração a dor das incertezas, do desamparo e da vulnerabilidade…

Quantas são confrontadas no cerne de sua sexualidade, feminilidade e maternidade e percebem aflorar questões e angústias relativas à sua autoestima, as significações que construíram para si mesmas e lhes permitem responder o que é ser uma mulher..

Quantas se veem reféns de seus medos, inseguranças e dúvidas de não serem mais amadas ou desejadas ou de suas ansiedades frente a possíveis empobrecimentos na relação amorosa e às inibições sexuais que podem surgir…

Quantas não são aquelas que vivenciam um sentimento de isolamento, retraimento e solidão, as vezes muito mais devastadores do que a dor e enfrentamento do diagnóstico, por não encontrarem lugar para expressar seus sentimentos de tristeza, desesperança, inseguranças, medos e angústias e por não encontrarem um apoio emocional e psíquico que lhe garanta uma possibilidade de reestruturação de suas vidas…

Diante desses incontáveis sentimentos e carga emocional a que são expostas – frente as rupturas traumáticas desse impossível de absorver – ressalto a importância da necessidade do engajamento em um processo psicoterapêutico como coadjuvante ao enfrentamento e reabilitação e reestruturação emocional e psíquica.

A Psicanálise como tratamento que se faz pela via da palavra convida à fala e a comunicação de uma narrativa singular como possibilidade para criar uma saída diante desse (im) possível de apreender e assim, nutrindo o campo para que as experiências ganhem novas configurações e sentidos, faz florescer a capacidade que cada uma traz em si mesma para reinventar e elaborar a própria história.

A psicoterapia como um meio eficiente e indispensável para trabalhar as angústias e os efeitos subjetivos provenientes das alterações no corpo e mente dessas mulheres ocasionados pelo câncer e seu tratamento oferece a oportunidade para que novos sentidos (em termos emocionais) sejam restaurados e (re) construídos.

A oportunidade para dar voz à intensidade dos sentimentos e emoções em face às circunstâncias que se apresentam, oferecem o suporte indispensável para que essas mulheres possam atravessar – na companhia de alguém – as angústias de um desconhecido que não cessa de se apresentar.

Ser acolhida de modo empático e sem julgamento em um processo analítico torna essa mulher cada vez mais capaz de encontrar palavras para verbalizar o seu sofrimento e ressignificar suas perdas.

Ainda assim, o processo terapêutico também oferece a oportunidade para que cada uma entre em contato com sua morada interna e, se aventurando no não conhecido de si mesma possa, morrendo e renascendo, tecer criativa e espontaneamente novos laços afetivos com seu próprio ser.

Em outras palavras, ser capaz de tocar e cuidar das emoções e dos aspectos subjetivos, faz com que essas mulheres, na relação com suas analistas, nesse laço de confiança construído entre ambas, encontrem novos caminhos de sentido a fim de integrar psiquicamente o que surgiu no real, no real de seus corpos.

Ainda que cada mulher reaja e sinta de uma maneira bastante singular as angústias que se apresentam, a confiança e o acolhimento desse profissional oferecem a condição para que cada uma entre em contato com a gama de emoções e sentimentos que precisam ser restaurados e reequilibrados – garantindo uma forma mais saudável para enfrentar tudo o que há de vir.

Mas, para além do enfrentamento àquilo que há de vir, esse suporte psicológico, resgata e recupera a disposição emocional e psíquica para que cada uma possa reconstruir sua identidade, sua imagem corporal, bem como novos referenciais de sentido para sua existência, no âmbito da sexualidade e identidade.

Nesse sentido, diante daquelas que em face as piruetas e surpresas da vida tem tanto para me ensinar… meu compromisso clínico, engajamento, respeito e cuidado se faz traduzido nas palavras de nossa grande poetisa Cora Coralina.

 

Muitas vezes basta ser: colo que acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silêncio que respeita, alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo, é o que dá sentido à vida.

É o que faz com que ela não seja nem curta, nem longa demais, mas que seja intensa, verdadeira, pura enquanto durar.

 

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