Crônica Psicanalítica – Sonhos – Vera Canhoni
Terças e quartas rigorosamente às 17h, ele entrava no consultório e antes de se repousar sobre o divã arrumava cautelosamente as flores do vaso em minha mesa.
Com certa ironia, apontava àquelas que não exibiam mais o mesmo colorido.
– Elas perderam seu porte e textura. Estão murchando…
– Não suporto as flores; lembram funerais e enterros.
Com ar de asco – tão marcante em seu modo de ser e de se comportar – alinhava, meticulosamente, seus sapatos entre duas (invariavelmente) formas geométricas desenhadas no tapete e se deitava no divã.
Após os habituais suspiros e queixas contou, pela primeira vez, um sonho que lhe parecia crônico, incurável e angustiante.
– Estou fugindo de vozes que não me deixam em paz. Severas, raivosas e assustadoramente sufocantes elas aparecem materializadas em um leão ou lobo com dentes afiados e olhos majestosamente incisivos e paralisantes. Na tentativa de encontrar uma saída ou um caminho seguro, sou sempre tragado pela terra, numa espécie de lamaçal lúgubre e espesso.
Acordo sobressaltado, abro meus olhos e meu corpo está encharcado de suor. Não consigo mover minhas mãos, braços ou pernas…
Nesta última noite não consegui dormi mais… fui à cozinha preparar um chá de rosas…e me enterrei no meu trabalho… nas minhas traduções; nos infinitos textos que me aborrecem cada vez mais; noite e dia…
– Um chá de rosas?! Para alguém que se diz avesso as flores… É um tanto curioso… não acha?
– Sim…Talvez elas me (des) enterrem! Nossa! Acho que me traí!
– Tradução, traição…
Já em pé diante do divã perguntou:
– A propósito, aquelas flores que estão no vaso são as antirrhinum majus?
– Sim. Vulgarmente traduzidas como bocas de leão…
– Amanhã às cinco?
– Amanhã às cinco.
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