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Vera Canhoni

Poesia – Nosso Tempo – Carlos Drummond de Andrade

Poesia – Nosso Tempo – Carlos Drummond de Andrade

Nosso Tempo


Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
 
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei.
Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra.
 
Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimo, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.
 
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
 
Mas eu não sou as coisas e me revolto,
tenho palavras em mim buscando canal,
São roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.
 
Este é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.
 
Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.
 
Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa, na praia as palavras.


A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais intimas,
a pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.


DRUMMOND, C.A. Obra completa, Rio de Janeiro: GB, Companhia José Aguilar, 1967

 

Psicoterapia psicanalítica para (re) inventar o viver

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