Clarice Lispector – palavras sons e sombras
Cada dia é um dia roubado da morte.
Eu não sou um intelectual, escrevo com o corpo.
E o que escrevo é uma névoa úmida.
As PALAVRAS são SONS transfundidos de SOMBRAS que se entrecruzam desiguais, estalactites, renda, música transfigurada de órgão.
Mal ouso clamar PALAVRAS a essa rede vibrante e rica, mórbida e obscura tendo como contratom o baixo grosso da dor.
Alegro com brio.
Tentarei tirar ouro do carvão…
Juro que este livro é feito sem PALAVRAS.
É uma fotografia muda. Este livro é um silêncio.
Este livro é uma pergunta.
Transgredir, porém, os meus próprios limites me fascinou de repente.
E foi quando pensei em escrever sobre a realidade, já que essa me ultrapassa.
Qualquer que seja o que quer dizer “realidade”.
Mas que ao escrever – que o nome real seja dada às coisas.
Cada coisa é uma PALAVRA. E quando não se a tem, inventa-se.
Esse vosso Deus que nos mandou inventar.
Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo.
Sim, minha força está na solidão.
Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.
Lispector, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro, Rocco, 1998.