Tempo Viajado
Dos meus retratos rasgados
me recomponho,
com minhas espumas de acaso,
meus solos vivos de fogo.
Muito se sofre.
As doces uvas sabem a enxofre.
Vulcões mordem as raízes
das minhas plantas,
em barcos postos a pique,
naufragaram muitas lembranças.
Dizei-me por que lugares
que pastores pastoreiam
até sempre estas saudades
a mim mesma tão alheias.
Muito se pena.
E vimos na areia morrer a sirena.
Procuro pelo meu rosto
o tempo que se desprende.
Que agulhas de desencontro
separaram minha gente?
Dos meus retratos rasgados
me levanto.
E acho-me toda em pedaços,
E assim mesmo vou cantando.
Muito se perde:
Pela terra negra ou pela água verde.
(Se Deus agora me visse,
abaixaria seus olhos
e ficaria mais triste)
Meireles, C. Obra poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S/A, 1987