Poesia – Alvaro de Campos – o dia deu em chuvoso – Vera Canhoni
O dia deu em chuvoso
O dia deu em chuvoso
A manhã, contudo, esteve bastante azul,
O dia deu em chuvoso
Desde manhã eu estava um pouco triste.
Antecipação? Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.
Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoas, chuvas, escuros – isso tenho eu em mim.
Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de ter vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.
Carinhos? Afetos? São memórias…
É preciso ser-se criança para os ter…
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.
Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer…
Quando foi isso? Não sei…
No azul da manhã…
O dia deu em chuvoso.
Álvaro de Campos
PESSOA, F. Ficções do Interlúdio: organização Fernando Cabral Martins. São Paulo, Companhia das Letras, 1998
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