Bordas do Inconsciente: infância e devaneio – Vera Canhoni
E para falar da infância e do devaneio um pouco mais de Gaston Bachelar…
Infância e devaneio – refúgios do passado
E Hellens cita Holrderlin: ”Não expulse o homem cedo demais da cabana onde decorreu a sua infância”.
A casa natal – perdida, destruída, demolida – permanece como a morada principal dos nossos devaneios de infância. Os refúgios do passado acolhem e protegem os nossos devaneios.
Bem abrigadas, as lembranças renascem mais como irradiações do ser do que como desenhos enrijecidos. Franz Hellens nos confia: “Minha memória é frágil, não tardo a esquecer o contorno, o traço; só a melodia permanece em mim. Memorizo mal o objeto, mas não posso esquecer a atmosfera, que é a sonoridade das coisas e dos seres.
Infância – dinamismo que anima os devaneios
Uma infância que não cessa de crescer, tal é o dinamismo que anima os devaneios de um poeta quando ele nos faz viver uma infância, quando nos sugere reviver a nossa infância.
Seguindo o poeta, parece que, se aprofundarmos nosso devaneio na direção da infância, enraizamos mais profundamente a árvore do nosso destino.
Permanece aberto o problema de saber onde o destino do homem tem suas verdadeiras raízes. Mas, ao lado do homem real, mais ou menos forte para endireitar a linha do seu destino, apesar do choque dos conflitos, apesar de todas as perturbações dos complexos, há em cada homem um destino do devaneio, destino que passa diante de nós em nossos sonhos e ganha corpo nos devaneios.
Devaneio – homem fiel a si mesmo
Não é também no devaneio que o homem se mostra mais fiel a si mesmo? E, se os nossos sonhos alimentam um pouco os nossos atos, sempre haverá um benefício em meditar sobre os nossos mais antigos sonhos na atmosfera da infância.
Franz Hellens faz esta revelação: “Sinto um grande alívio. Regresso de uma longa viagem e adquiri uma certeza: a infância do homem levanta o problema de toda a sua vida; cabe à idade madura encontrar-lhe a solução.
Durante trinta anos caminhei com esse enigma sem conceder-lhe um só pensamento, e hoje sei que tudo já estava dito quando me pus em marcha. Os reveses, as mágoas, as decepções passaram por mim sem atingir-me nem fatigar-me.”
In: Bachelar, G. A poética do devaneio. São Paulo, Martins Fontes, 2006